quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Contos / artista convidada: Luana Câmara

Luana Câmara / Conto Ficcional

O que dizer desta garota?
A conheci um dia através de uma rede social na Internet (nada mais próprio para uma geek, fan de exatas como ela). Trocamos referências artísticas durante uma semana inteira pela tela fria do pc...
De Dostoievsky a Mayakovsky, de Aldous Huxley a Cranberries uma admiração profunda nasceu...
Quando vi, lá estavamos nós sentados no sofá de sua casa que fica no bairro jardim das indústrias, na cidade do avião também conhecida como São José dos Campos.
Eu dedilhava uns acordes menores e ela fazia sua voz de contralto ressoar pelos cômodos do lugar... Muito mais potente que bons amplificadores Marshal’s (fiquei abismado só de vê-la cantar) achei que as janelas da casa fossem se romper...hehehe.
Dona de uma de um espírito questionador e de uma sensibilidade incrível pra escrever, Luana Câmara também conhecida como (DEL para os amigos) encontra-se entre as poucas pessoas (especialmente garotas) da face da terra que consigo falar de filosofia, artes, literatura e religião sem que me tome por um completo NERD, que na atual conjuntura acaba não sendo tao má coisa assim, afinal todo mundo hoje anseia em ser “cult” não é mesmo? Mesmo que seja no discurso apenas...rsrs.
Versada em inglês, russo e espanhol, Luana reúne qualidades antagônicas numa só pessoa: como ser programadora e ao mesmo tempo cantora de banda de rock... Nada mais natural para uma menina de 19 anos que consegue andar de mãos dadas com a área de humanas e exatas com uma naturalidade que chega a incomodar...
Adjetivos não faltam para ela, e eu seguramente pasmo cada vez que leio apenas alguma coisa dela (chega a dar vergonha do que escrevo para não dizer o pior) ainda assim é com grande carinho e admiração que trago este conto roubado do blog dela que depois de certo tempo ela resolveu me ceder...
Boa leitura e não esqueçam de comentar no fim do post.
(Obrigado do texto Del... Ficou esplendido, estou esperando o próximo, Bj).


Coração de lata
texto:Luana Câmara
Ilustrações: ApolloMagno
















Era sol na Cidade do Avião.
7v4//4, sentada calmamente no banco de trás do carro, era um bebê de bochechas coradas e saudáveis.
Presa numa dessas cadeiras próprias para sua idade, 7v4//4 ainda balbuciava as primeiras sílabas quando aconteceu tal fato: seus pais, ambos voltando da Fábrica-da-imaginação, morreram num acidente de carro.
Quando chegou ao hospital, quase sem vida, 7v4//4 foi socorrida pelo Ministério-da-boa-vivência para que a cirurgia fosse executada: perdera parte do coração e todo o braço esquerdo por causa das partículas químicas cravadas, dolorosamente, em seu pequeno corpo. Procedimento? Um novo coração e uma prótese, o que deixaria sequelas e marcas, risos alheios na hora do recreio, choros noturnos abafados e problemas psicológicos eternos. Crianças humanas eram cruéis, desde que os Ômega25 eram conhecidos como PCs.
















Quando o caso tomou conhecimento do Ministério-da-amizade e dos Ômega25, todos se sensibilizaram. O que fazer, nesse caso? Já não bastava 7v4//4 ter ficado violentamente órfã, ainda sofrer tantos problemas graças a rústicos métodos da medicina?
- Demos-lhe um novo coração – disse o presidente dos Ômega25 com sua voz metálica.
- Sem dúvida – interrompeu o Ministro-da-amizade –, mas o procedimento é complicado e...
- Demos-lhe um coração Ômega25! – ordenou o presidente.
“Um coração de lata?” Pensaram os humanos da sala. Um bebê com coração Ômega25 seria metade humana, metade exata.
- Vamos, obedeçam minhas ordens! 7v4//4 será a primeira humana-robô de nossa história – sorria ele, através do plasma.
O silêncio pairava. Humanos entreolhavam-se. Ômegas25 se preparavam. Lã-de-vidro, fibra ótica, tecido humano e instrumentos cirúrgicos: mãos a obra.
Durante muito tempo, 7v4//4 foi um segredo de estado: nem mesmo ela própria sabera de seu coração exato. Isso não a diferenciava das outras meninas da sua idade: não gostava de matemática, como todos os humanos; se interessava pelo Ministério-da-moda como todas as meninas e queria chamar atenção dos meninos-humanos, como todas as humanas. Mesmo que nenhum deles chamassem a sua atenção.




















7v4//4 certa vez, entrou numa Retrô. Era uma loja modesta que vendia artigos do passado: tocadores de música, aspiradores de pó, e aqueles livros de contos que um dia ouvira falar. Curiosamente, abriu um deles, e, passando o olhar por uma das linhas iniciais, foi sutilmente interrompida:
- É chapéuzinho vermelho – disse um Ômega25, daqueles modelos novos, que muito lembravam a figura humana.
- Claro, meus pais sempre liam antes que eu dormisse – mentiu 7v4//4.
Silêncio. O Ômega25 parecia ler a mente de 7v4//4 e desvendar sua maior mentira: humana, sem pais.
- Não sei o que são pais – suspirou o Ômega.
- São o maior presente que se pode ter – disse 7v4//4, sendo levemente acompanhada por uma quase imperseptível voz de choro.
7v4//4 correu o olhar pela sala, parando em um antigo Ômega25, que era chamado de Desktop, no passado.
- É meu mais velho parente – riu o Ômega -. Prazer. Me chamo T3ci.
- 7v4//4, prazer – riu coradamente.















Muitos sóis passaram e 7v4//4, juntamente com T3ci foram com eles. Passaram tempos com amizade verdadeira, típica dos Ômega25.
- Preciso te contar uma coisa – disse T3ci.
- Sem problemas – sorriu 7v4//4.
- Acho que gosto de você.
- Não pode gostar de mim, T3ci. É um Ômega25. Tem coração de lata e mente sábia. O amor não é uma resposta sã.
- Aí você se engana – interrompeu - , pois sou a versão mais perfeita dos Ômega. Tenho coração humano feito de linhas de amizade, e mente lógica feita de dígitos de gente. Gente de verdade, como você. E sei que o amor é as asas da liberdade, mesmo que meu corpo seja feito de matéria reciclada.
- Mas um dia vou perecer, e o que será de você? – indagou 7v4//4.
- Nada, é assim que tem que ser – suspirou T3ci.
- Não posso – andou 7v4//4.
- É estranha! Até parece ter coração de lata! – resmungou T3ci -, mas eu te espero: teu tempo é diferente do meu.
Agora os olhos castanhos dela encaravam o cristal líquido dos dele.
Agora o coração dela clamava pelo dele.
Agora a mente dele processava muito mais confusamente que a dela.
-Posso saber, ao menos, o motivo?
-Claro, T3. Também estou apaixonada.

END

2 comentários:

  1. Conto leve e agradável, que induz a ler outros do tipo, de uma mistura entre Romantismo e a era da informática e da eletrõnica. Passagens como "olhos de cristal líquido" e diálogos curtos que expressam uma situação chave atingem o clímax com eficácia. Apesar de curto, uma experiência positiva de ficção. Gostei.

    André Luiz

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